Post by Paulo Henrique Alves Machado on Oct 29, 2004 22:32:24 GMT -5
É difícil entender a natureza da nossa consciência, visto que, somente agora, posso recordar com clareza minha vida aos doze anos. Não que houvesse de todo esquecido, mas agora, já bem próximo ao declínio da vida, é que posso quase reviver cada sensação, cada momento.
Eu havia ganhado uma bicicleta. Há muito que sonhara com isso, mas não acreditava que tal pudesse realizar-se. Já estava acostumado a ver os anseios como algo pertencente a uma esfera inatingível. Sonhos eram sonhos, nada mais. Meu pai fora um homem sem ímpeto para realizações e, assim, sonhávamos apenas como se fosse um jogo. Quando acaso questionávamos junto a ele a razão de tais projetos não saírem do âmbito das conversas à mesa, meu pai reagia cheio de nervos, já interrompendo-nos o gozo de tais sonhos. Aquele presente, portanto, era motivo para um duplo regozijo, a tomar-me de assalto às expectativas de um antigo sonho.
Sempre à noite, após terminar as tarefas escolares, eu tomava meu “veículo” e perambulava até às nove pela pequena cidade onde morávamos. Eram poucas ruas de cascalho, que se tornavam ainda menores quando percorridas assim de bicicleta. As serras circundavam a pequena vila e, ao cair da noite, esses colossos tingiam-se de um negrume intenso e desolador, como paredes abismais a fechar-nos, a isolar-nos do restante do mundo. Nas ruas, fracas luminárias intensificavam a tristeza noturna de um lugar que apenas se refestelava aos finais de semana. Do contrário, era sempre triste, aborrecido, cansativo.
Eu era lagarta em crisálida. Os hormônios estavam em plena erupção no meu corpo e a cidade nunca fora tão pequena e vazia. Um platonismo amoroso tomou conta de mim, antes mesmo que pudesse conhecer algo do filosofo humanista. Eu era uma planta mal cuidada e que crescia sem nenhum vigor. Mais um moleque sem muita convicção em si. Havia, porém, uma certeza no meu coração: de que eu pertencia a uma espécie diferente daqueles que me rodeavam e, pelo visto, essa minha espécie era inferior, pois sempre havia um sorriso malicioso e debochado estampado no rosto daqueles que me fitavam; tudo o que eu fazia ou dizia era motivo de chalaça para as pessoas daquele lugar.
Tínhamos vindo de fora. O prefeito da cidade era tio do meu pai. Migramos, dessa forma, atrás de promessas de uma vida melhor. Ser parente da maior autoridade municipal, não ajudou em nada minha popularidade na escola, já que éramos odiados por gente que nem mesmo nos conhecia, e antes mesmo de desembarcarmos naquelas paragens.
Quando ganhei, no entanto, minha primeira bicicleta, brotou-me um sentimento novo: de que eu era o senhor da minha história naquele universo hostil – que me obrigava a estar sempre reprimido a um canto, envergonhado não sei do quê. Foi ai que, como Trumman, descobri que aquele lugar era limitado por demais. Eu queria viver mais perto dos meus sonhos, queria ter a ilusão de que eles estavam a toque das minhas mãos. Vivendo ali, teria o mesmo destino daqueles que ali viviam: cedo pararia de estudar; trabalharia como lacaio de gente pouco rica; casar-me-ia, escolhendo entre as poucas opções existentes – com uma consorte a minha altura, lógico. Nada de sonhar com rapariga que não fosse para o meu “bico” – embriagar-me-ia aos fins-de-semana e aprontaria arruaças; na segunda-feira, compareceria ao serviço com a maior cara-de-pau, como se nada houvesse acontecido. E, assim, enterraria todos os meus dias naquele formigueiro. Ao morrer, receberia o fim como um prêmio a muito esperado.
A propósito, eu estava apaixonado secretamente por uma jovem de uma casta superior. Para cortejá-la, só havia uma possibilidade: buscar, fora dali, sucesso e riquezas, e, como um El Cid mirim, retornar para resgatar aquele amor. Mas, enquanto a complexa manobra não se realizava, montado naquela bicicleta, que talvez fosse minha alma exterior, passava dez, vinte, trinta e tantas vezes na porta da casa dela, na esperança de vê-la um segundo que fosse, e tornar minha noite um pouco menos triste, as ruas um pouco menos escuras, a cidade menos aborrecida e aquelas serras – de um negrume infinito à noite – não me comprimissem tanto, tanto o peito.
No meio da madrugada, acordei. Só conseguia lembrar que ela me dera um beijo – o beijo tão sonhado, o beijo tão esperado – a gola do pijama estava empapado de suor; o cantar de uma infinidade de galos infernizava no silêncio escuro da noite. Sentei-me na varanda para respirar o ar fresco. O coração batia acelerado, e eu queria prolongar aquela sensação do beijo. Olhei a rua fantasmagórica. O negrume das serras parecia estrangular-me naquele momento. O coração acelerado e aflito parecia bombear o suor que vertia por todos os poros do meu corpo e, na cabeça, um sonho. Senti, por um momento, que estava morto e que aquele lugar era minha sepultura. As paredes negras, que circundavam o lugar, desabavam sobre mim, sepultando-me ainda vivo, para sempre.
Eu havia ganhado uma bicicleta. Há muito que sonhara com isso, mas não acreditava que tal pudesse realizar-se. Já estava acostumado a ver os anseios como algo pertencente a uma esfera inatingível. Sonhos eram sonhos, nada mais. Meu pai fora um homem sem ímpeto para realizações e, assim, sonhávamos apenas como se fosse um jogo. Quando acaso questionávamos junto a ele a razão de tais projetos não saírem do âmbito das conversas à mesa, meu pai reagia cheio de nervos, já interrompendo-nos o gozo de tais sonhos. Aquele presente, portanto, era motivo para um duplo regozijo, a tomar-me de assalto às expectativas de um antigo sonho.
Sempre à noite, após terminar as tarefas escolares, eu tomava meu “veículo” e perambulava até às nove pela pequena cidade onde morávamos. Eram poucas ruas de cascalho, que se tornavam ainda menores quando percorridas assim de bicicleta. As serras circundavam a pequena vila e, ao cair da noite, esses colossos tingiam-se de um negrume intenso e desolador, como paredes abismais a fechar-nos, a isolar-nos do restante do mundo. Nas ruas, fracas luminárias intensificavam a tristeza noturna de um lugar que apenas se refestelava aos finais de semana. Do contrário, era sempre triste, aborrecido, cansativo.
Eu era lagarta em crisálida. Os hormônios estavam em plena erupção no meu corpo e a cidade nunca fora tão pequena e vazia. Um platonismo amoroso tomou conta de mim, antes mesmo que pudesse conhecer algo do filosofo humanista. Eu era uma planta mal cuidada e que crescia sem nenhum vigor. Mais um moleque sem muita convicção em si. Havia, porém, uma certeza no meu coração: de que eu pertencia a uma espécie diferente daqueles que me rodeavam e, pelo visto, essa minha espécie era inferior, pois sempre havia um sorriso malicioso e debochado estampado no rosto daqueles que me fitavam; tudo o que eu fazia ou dizia era motivo de chalaça para as pessoas daquele lugar.
Tínhamos vindo de fora. O prefeito da cidade era tio do meu pai. Migramos, dessa forma, atrás de promessas de uma vida melhor. Ser parente da maior autoridade municipal, não ajudou em nada minha popularidade na escola, já que éramos odiados por gente que nem mesmo nos conhecia, e antes mesmo de desembarcarmos naquelas paragens.
Quando ganhei, no entanto, minha primeira bicicleta, brotou-me um sentimento novo: de que eu era o senhor da minha história naquele universo hostil – que me obrigava a estar sempre reprimido a um canto, envergonhado não sei do quê. Foi ai que, como Trumman, descobri que aquele lugar era limitado por demais. Eu queria viver mais perto dos meus sonhos, queria ter a ilusão de que eles estavam a toque das minhas mãos. Vivendo ali, teria o mesmo destino daqueles que ali viviam: cedo pararia de estudar; trabalharia como lacaio de gente pouco rica; casar-me-ia, escolhendo entre as poucas opções existentes – com uma consorte a minha altura, lógico. Nada de sonhar com rapariga que não fosse para o meu “bico” – embriagar-me-ia aos fins-de-semana e aprontaria arruaças; na segunda-feira, compareceria ao serviço com a maior cara-de-pau, como se nada houvesse acontecido. E, assim, enterraria todos os meus dias naquele formigueiro. Ao morrer, receberia o fim como um prêmio a muito esperado.
A propósito, eu estava apaixonado secretamente por uma jovem de uma casta superior. Para cortejá-la, só havia uma possibilidade: buscar, fora dali, sucesso e riquezas, e, como um El Cid mirim, retornar para resgatar aquele amor. Mas, enquanto a complexa manobra não se realizava, montado naquela bicicleta, que talvez fosse minha alma exterior, passava dez, vinte, trinta e tantas vezes na porta da casa dela, na esperança de vê-la um segundo que fosse, e tornar minha noite um pouco menos triste, as ruas um pouco menos escuras, a cidade menos aborrecida e aquelas serras – de um negrume infinito à noite – não me comprimissem tanto, tanto o peito.
No meio da madrugada, acordei. Só conseguia lembrar que ela me dera um beijo – o beijo tão sonhado, o beijo tão esperado – a gola do pijama estava empapado de suor; o cantar de uma infinidade de galos infernizava no silêncio escuro da noite. Sentei-me na varanda para respirar o ar fresco. O coração batia acelerado, e eu queria prolongar aquela sensação do beijo. Olhei a rua fantasmagórica. O negrume das serras parecia estrangular-me naquele momento. O coração acelerado e aflito parecia bombear o suor que vertia por todos os poros do meu corpo e, na cabeça, um sonho. Senti, por um momento, que estava morto e que aquele lugar era minha sepultura. As paredes negras, que circundavam o lugar, desabavam sobre mim, sepultando-me ainda vivo, para sempre.