Post by Paulo Henrique Alves Machado on Dec 7, 2003 20:38:05 GMT -5
Podeis chamar-me como quiserdes. Já não me importo com a alcunha que por ventura invocam-me. Há muito mesmo que não sou dono de mim. Lembro-me pouco do meu passado, mas sei que hoje vivo no inferno, com direito a todos os demônios e tormentos que podeis imaginar. Como tudo teria começado...? Tal como um sonho, recordo-me de fragmentos dispersos, desconexos – ao menos parecem-me. Talvez podeis ajudar-me. Mas não vos obrigueis a isso. Sei que ninguém mesmo se importa com a minha condição. Acostumei-me a viver a margem, como os páreas.
Lembro-me de um pai a visitar-me de longe em longe. Sempre a justificar-se: muito trabalho, muito trabalho, muito trabalho..., no entanto, tornar-se-ia meu herói, após o desencanto do meu universo. Não me perguntai, pois não vos saberia dizer o que realmente significa esse desencanto. E hoje vivo aqui, como um bicho rodeado de aberrações, deformações da realidade. Diariamente vejo os jovens entrarem por aquela porta maldita; tento gritar, apelar para que eles não entrem, mas é tudo inútil. Eles têm os ouvidos mocos para os apelos de um traste como eu. Amanhã serão trastes também, mas eles não acreditam nisso.
Foi ela quem trouxe-me aqui. Eu creio que não pensava em nada quando vim para cá, a vida parecia-me um paraíso de liberdade e gozos. Cheguei a pensar que não havia lugar melhor no mundo. Mas eu estava errado. Tento-me ir, mas não posso. Agora estou fraco para tentar fugir desta fortaleza química, este encantamento criado pelo demônio chamado Humanidade. Ela envelheceu e já não me satisfaz. A paixão dos primeiros tempos acabou, mas continuamos unidos por uma dependência, que já não sei dizer de onde vem. Eu gostaria de matá-la, mas há quem diga que a maldita é imortal com seu pai, o demônio Humanidade. Eu sei, porém, que tudo é finito, mas, no nosso caso, a extinção será de ambos, simultaneamente.
Meus pais moravam em casas separadas e eu era como que uma bola que se joga para de cá para lá. Eu cheguei até mesmo a gostar desse jogo. Servia aos meus propósitos, principalmente para fazer chantagem com minha mãe: “Se não me dás isto, vou-me à casa de meu pai”. Funcionava. Assim, eu a controlava e ela acabou sendo a bola. Mas esse brinquedo estragou-se com o tempo, quando o vinho tomou meu lugar em sua vida. Meu pai levou-me para morar consigo. Por algum tempo eu gostei muito daquilo, mas logo vieram as exigências e eu não estava acostumado àquilo. Queria continuar meu jogo, mas o velho deu de surrar-me e não pude suportar: “O maldito nunca fora um pai verdadeiramente, como vinha agora a tocar-me com seu açoite?”
Ontem eu comi uma barata, pensei que fosse algum fruto do mar. Dei por mim quando pude sentir alguma coisa e o amargo me veio a boca, vi seus restos ao meu lado, senti náusea e procurei ela para consolar-me. Antes ela levava-me para outros universos, mas agora somente sua mão pode tirar-me do inferno por algum tempo. Essa maldita prostituta vive a seduzir todos e todos tornam-se seus escravos. Eu juro que tento ajudá-los, mas todas as minhas forças já foram sugadas. Quando cheguei por aqui, os gritos de socorro de suas antigas vítimas suavam-me como saudações de boas vindas. Só agora posso compreender.
Lembro-me de ter saído da cidade com meus amigos. Fundaríamos uma comunidade, onde viveríamos em completa liberdade. Não havia entre nós algum tolo ignorante. Éramos jovens esclarecidos, inteligentes e audazes. Criaríamos o que a civilização humana não fez em milênios. Entretanto, conhecemos apenas a fome, o frio e o desprezo das pessoas. E foi aí que ela apareceu tão rica, tão fascinante e tão bondosa.
Ela encontrou-nos a beira do caminho. O frio das noites de outono já era bastante insuportável. Além disso, a fadiga nos fez parar no cimo de uma colina de onde víamos as luzes das pequenas aldeias ainda distantes. À cerca de uma milha dali a entrada de uma quinta parecia nos convidar para o pernoite. Andamos um pouco mais, quase a desmaiar de cansaço, fome e frio.
Quando chegamos à tal quinta, uma moça muito bonita esperava-nos no portão daquele lugar. Era estranho, não tínhamos planejado nada com antecedência, nem tão pouco comunicado nossa chegada. Como aquele anjo teria adivinhado que chegaríamos? Mas, como eu já disse, a fadiga era tanta que aceitamos entrar, sem questionar nada. De repente, entramos numa espécie de transe e tudo se transformou numa festa, como se fossemos estrelas de cinema a entrar naquele recinto. Todos riam, bebiam, cantavam e nos saudavam. A fadiga deixou-nos e começamos a dançar, dançar, dançar... a noite toda. A todo momento ela, a bela recepcionista, chegava conduzindo um grupo de rapazes e moças. Todos jovens e bonitos que estavam ali tentando lembrar ou esquecer algo. Estranhamente, ao pé das paredes, sombras pareciam acenar para nós, mas a alegria era tanta que não poderíamos estragar observando algo tão bizarro.
A festa durou muitas noites; amamos muitas mulheres; bebemos muito vinho e comungamos com ela, como se fosse nossa eucaristia. Depois beijamo-nos, todos, pois nossas bocas já não nos pertenciam; nossas línguas se tocavam embaladas pelo ritmo que conduzia aquela orgia divina, pois divinos éramos e havíamos recriado o paraíso. Ela amou a todos, sem exceção. Todos nós dormimos com ela, homens e mulheres. Ali havia a liberdade que procurávamos. Um sonho que finalmente se realizava. Já não havia “eu”; havíamos nos fundido e formado um grande deus ou uma grande deusa. Ela, a deusa, que viajou por todos os universos desconhecidos pelo homem, nos acolheu e revelou todos os seus segredos. Segredos lindos, maravilhosos. Éramos felizes. Plenamente felizes. Quem dera houvesse linguagem para descrever nossa loucura! Era como se pudéssemos viajar por todas as galáxias, nebulosas, universos e visitar o gabinete de Deus, dançando no Olimpo como pândegos, para depois sair chutando estrelas e urinando nos planetas em que houvesse vida.
Mas um dia eu acordei e estava no inferno. Ela não era bela, não era jovem, não era humana, nem tão pouco uma deusa. Era a filha de satã e eu era seu prisioneiro. A vampira havia sugado de mim toda a vida, e o que restou foi apenas uma sombra que hoje vive ao pé das paredes tentando beber um pouco do antigo prazer da vida. Assistindo a chegada de outros desgraçados que não podem nos ouvir. Sou como uma planta que enfeita o jardim dela. Todos admiram-me sem saber que, na verdade, sou um ser humano que perdeu a alma iludido por um mundo que não existia. Deixei-me levar pelas minhas próprias ilusões e sei que muitos outros, iludidos, virão depois de mim e não posso fazer nada. Nada.
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Lembro-me de um pai a visitar-me de longe em longe. Sempre a justificar-se: muito trabalho, muito trabalho, muito trabalho..., no entanto, tornar-se-ia meu herói, após o desencanto do meu universo. Não me perguntai, pois não vos saberia dizer o que realmente significa esse desencanto. E hoje vivo aqui, como um bicho rodeado de aberrações, deformações da realidade. Diariamente vejo os jovens entrarem por aquela porta maldita; tento gritar, apelar para que eles não entrem, mas é tudo inútil. Eles têm os ouvidos mocos para os apelos de um traste como eu. Amanhã serão trastes também, mas eles não acreditam nisso.
Foi ela quem trouxe-me aqui. Eu creio que não pensava em nada quando vim para cá, a vida parecia-me um paraíso de liberdade e gozos. Cheguei a pensar que não havia lugar melhor no mundo. Mas eu estava errado. Tento-me ir, mas não posso. Agora estou fraco para tentar fugir desta fortaleza química, este encantamento criado pelo demônio chamado Humanidade. Ela envelheceu e já não me satisfaz. A paixão dos primeiros tempos acabou, mas continuamos unidos por uma dependência, que já não sei dizer de onde vem. Eu gostaria de matá-la, mas há quem diga que a maldita é imortal com seu pai, o demônio Humanidade. Eu sei, porém, que tudo é finito, mas, no nosso caso, a extinção será de ambos, simultaneamente.
Meus pais moravam em casas separadas e eu era como que uma bola que se joga para de cá para lá. Eu cheguei até mesmo a gostar desse jogo. Servia aos meus propósitos, principalmente para fazer chantagem com minha mãe: “Se não me dás isto, vou-me à casa de meu pai”. Funcionava. Assim, eu a controlava e ela acabou sendo a bola. Mas esse brinquedo estragou-se com o tempo, quando o vinho tomou meu lugar em sua vida. Meu pai levou-me para morar consigo. Por algum tempo eu gostei muito daquilo, mas logo vieram as exigências e eu não estava acostumado àquilo. Queria continuar meu jogo, mas o velho deu de surrar-me e não pude suportar: “O maldito nunca fora um pai verdadeiramente, como vinha agora a tocar-me com seu açoite?”
Ontem eu comi uma barata, pensei que fosse algum fruto do mar. Dei por mim quando pude sentir alguma coisa e o amargo me veio a boca, vi seus restos ao meu lado, senti náusea e procurei ela para consolar-me. Antes ela levava-me para outros universos, mas agora somente sua mão pode tirar-me do inferno por algum tempo. Essa maldita prostituta vive a seduzir todos e todos tornam-se seus escravos. Eu juro que tento ajudá-los, mas todas as minhas forças já foram sugadas. Quando cheguei por aqui, os gritos de socorro de suas antigas vítimas suavam-me como saudações de boas vindas. Só agora posso compreender.
Lembro-me de ter saído da cidade com meus amigos. Fundaríamos uma comunidade, onde viveríamos em completa liberdade. Não havia entre nós algum tolo ignorante. Éramos jovens esclarecidos, inteligentes e audazes. Criaríamos o que a civilização humana não fez em milênios. Entretanto, conhecemos apenas a fome, o frio e o desprezo das pessoas. E foi aí que ela apareceu tão rica, tão fascinante e tão bondosa.
Ela encontrou-nos a beira do caminho. O frio das noites de outono já era bastante insuportável. Além disso, a fadiga nos fez parar no cimo de uma colina de onde víamos as luzes das pequenas aldeias ainda distantes. À cerca de uma milha dali a entrada de uma quinta parecia nos convidar para o pernoite. Andamos um pouco mais, quase a desmaiar de cansaço, fome e frio.
Quando chegamos à tal quinta, uma moça muito bonita esperava-nos no portão daquele lugar. Era estranho, não tínhamos planejado nada com antecedência, nem tão pouco comunicado nossa chegada. Como aquele anjo teria adivinhado que chegaríamos? Mas, como eu já disse, a fadiga era tanta que aceitamos entrar, sem questionar nada. De repente, entramos numa espécie de transe e tudo se transformou numa festa, como se fossemos estrelas de cinema a entrar naquele recinto. Todos riam, bebiam, cantavam e nos saudavam. A fadiga deixou-nos e começamos a dançar, dançar, dançar... a noite toda. A todo momento ela, a bela recepcionista, chegava conduzindo um grupo de rapazes e moças. Todos jovens e bonitos que estavam ali tentando lembrar ou esquecer algo. Estranhamente, ao pé das paredes, sombras pareciam acenar para nós, mas a alegria era tanta que não poderíamos estragar observando algo tão bizarro.
A festa durou muitas noites; amamos muitas mulheres; bebemos muito vinho e comungamos com ela, como se fosse nossa eucaristia. Depois beijamo-nos, todos, pois nossas bocas já não nos pertenciam; nossas línguas se tocavam embaladas pelo ritmo que conduzia aquela orgia divina, pois divinos éramos e havíamos recriado o paraíso. Ela amou a todos, sem exceção. Todos nós dormimos com ela, homens e mulheres. Ali havia a liberdade que procurávamos. Um sonho que finalmente se realizava. Já não havia “eu”; havíamos nos fundido e formado um grande deus ou uma grande deusa. Ela, a deusa, que viajou por todos os universos desconhecidos pelo homem, nos acolheu e revelou todos os seus segredos. Segredos lindos, maravilhosos. Éramos felizes. Plenamente felizes. Quem dera houvesse linguagem para descrever nossa loucura! Era como se pudéssemos viajar por todas as galáxias, nebulosas, universos e visitar o gabinete de Deus, dançando no Olimpo como pândegos, para depois sair chutando estrelas e urinando nos planetas em que houvesse vida.
Mas um dia eu acordei e estava no inferno. Ela não era bela, não era jovem, não era humana, nem tão pouco uma deusa. Era a filha de satã e eu era seu prisioneiro. A vampira havia sugado de mim toda a vida, e o que restou foi apenas uma sombra que hoje vive ao pé das paredes tentando beber um pouco do antigo prazer da vida. Assistindo a chegada de outros desgraçados que não podem nos ouvir. Sou como uma planta que enfeita o jardim dela. Todos admiram-me sem saber que, na verdade, sou um ser humano que perdeu a alma iludido por um mundo que não existia. Deixei-me levar pelas minhas próprias ilusões e sei que muitos outros, iludidos, virão depois de mim e não posso fazer nada. Nada.
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