Post by Paulo Henrique Alves Machado on Dec 4, 2003 0:40:38 GMT -5
É Domingo. Um Domingo quente e de sol ultrabrilhante. Uma mulher jovem dorme em decúbito ventral, os braços cruzados sob o travesseiro, o lençol cobre-lhe basicamente o glúteo generoso, o condicionador de ar permite-lhe conforto térmico para estar assim adormecida às 9:00 horas da manhã na saárica Cuiabá. Ela desperta, mas permanece de olhos fechados, em alpha como se diz no jargão médico. No seu caso, porém, já deve ser o estado ômega, pois há horas ela dorme. Seu nome é Valéria, tem 25 anos, trabalha e faz faculdade à noite. Ultimamente tem sentido uma vontade incontrolável de dormir. Dormiria dias seguidos se pudesse. Ao mesmo tempo, ela sente vontade de sair, fazer coisas agradáveis, curtir os amigos, dançar... mas o trabalho e o futuro têm consumido todo o seu tempo. Quando está livre – coisa rara nos últimos tempos – não tem energia para viver uma vida normal de uma garota solteira e independente. Vida dupla: professora e advogada, duas profissões exigentes. Ainda mais quando vivida assim: professora profissional e advogada aprendiz. Entre avaliações e processos ela tem perdido o juízo. Reclamar? Nem pensar, pois logo vem um: “Você deveria dar graças a Deus... blá... blá... blá...”. Sinal dos tempos: tempos de recessão, desemprego, superpopulação e de um pessimismo sem precedentes na história de Valéria.
Ela levanta, senta na cama, olha o relógio e constata que a manhã se foi. Ontem foi dia de balada. Já não estava muito aí, mas o tempo fechou quando o passado ressuscitou diante dos seus olhos. Não! Chega! Sofrer por uma relação que já deu o que tinha que dar? Valéria vestiu a máscara da “mulher segura” e levantou vôo, indo chorar na sua cela solitária. Um bosta, um bostinha ordinário, um bostinha... adorável! Valéria tem um quê de estética barroca no seu comportamento. Só de pensar chora por aquilo que ela jura não sentir. São máscaras, máscaras que lhe revestem o verdadeiro rosto. São tantas que ela mesma já não sabe qual é o seu verdadeiro semblante. A máscara de mulher, a máscara pequeno-burguesa, a máscara de educadora, a máscara de filha, a máscara de irmã, a máscara de advogada... quem é Valéria? Ela sabe que usa máscaras e acostumou-se principalmente com a máscara do PREDADOR. Ela sabe... pois, em suas duas profissões, assiste a queda de máscaras o tempo todo. O que ela quer da vida é muito claro. É o que todos querem. É o sucesso. Indecifrável, obscura e incerta palavra: sucesso. O que é o sucesso nazareno? Jesus não teria resposta, assim como não teve para a pergunta do seu inquisidor.
Bela e vistosa, com a força das ninfas do campo – cevadas pelos bons alimentos e pelo trabalho constante – ela finalmente consegue levantar-se e caminhar até o banheiro. Ao escovar os dentes, percebe as olheiras e quer morrer. Penteia os cabelos e constata que estão caindo em demasia. Ela está um terror naquela manhã. É isso que ela sente. É assim que ela se sente. Desce até a cozinha e procura alguma coisa bem light para matar a fome naquela manhã – afinal o horário do almoço já se aproxima. Se tomasse um “café-da-manhã” de verdade, viraria uma pipa no final do dia. Merda! Não tem suco de laranja, não tem porra nenhuma de fruta. Pois vejam só: saem de casa o pai, a mãe e a irmã e não têm a hombridade de fazer uma feirinha sequer, deixando “o traste” a morrer de fome. O pior de tudo é que não tem ninguém para ouvir suas reclamações e dramalhões. Droga! Só tem ovos, leite e tamarindo. Ela odeia tamarindo. Vai fazer um ovo frito. Depois que comeu veio o arrependimento: “Se tivesse tomado um copinho de leite teriam sido melhor, menos calorias. Já deveria é ter feito o almoço logo. Tenho que almoçar sozinha mesmo”. Uma semana sozinha é o suficiente para enlouquecer qualquer mulher como Valéria, que precisa de criaturas ao seu redor, mesmo que, quando as tem, pareça não fazer muita questão delas. Alguém que possa ouvir-lhe os gritos e faniquitos já estava bom. Ela não sente vontade de fazer nada, arrumar a cama, almoço, varrer a casa pra quê? Pra quem? Naquele momento, ela é a pessoa mais solitária do mundo. Resolve ligar para a melhor amiga, mas, antes que possa desabafar, começa aquela choradeira. A amiga tem mais problema, ou acha que tem mais problemas do que ela mesmo. Valéria resolve desligar. Aquele papo está enchendo. Será que não tem um cristão nesta cidade com quem se possa ter uma conversa de nível razoável?
Ela sobe para o quarto e, diante da pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, pede à intercessora dos homens junto a Deus que lhe ajude para que possa terminar seu curso de direito e iniciar uma nova carreira, em uma nova cidade, onde ela possa ter uma vida mais feliz, onde as pessoas possam entendê-la melhor, onde ela possa crescer, onde não faça tanto calor que faz a maquiagem borrar, suar a roupa, mau cheiro... Oh, minha Nossa Senhora, me ajude! Bebida energética já nem faz mais efeito, nos seus serões para estudar ou corrigir provas. Já pensou até em dar uns “tiros” – daqueles tiros sem arma – para ressuscitar após o cansaço mortal, mas não foi essa formação que ela recebeu. Não combina com ela. Olhos sem palpebras perscrutavam sua vida. Ela não decepcionaria sua santa protetora.
A estética barroca volta a tomar conta dessa mulher. Será que existe reencarnação? Na igreja ensinavam que isso era bobagem. Mas se não existisse, o que ela fizera contra Deus para despertar sua ira? Por que ela sofria tanto? E, se existisse, deveria ter sido uma pessoa muito ruim na vida passada, que fazia as pessoas que a amavam sofrer bastante. Então, se fosse assim, bem feito para ela. Tinha mais era que sofrer. Ela lembra mais uma vez do ex-namorado e as lágrimas começam a sair dos seus olhos sem que as queira. Meu Deus! Ela nunca seria nada na vida! Nasceu para ser trouxa! Nasceu para dar valor a quem não a valorizava! Um choro convulsivo toma conta da bela e jovem mulher. Uma pérola. Uma pérola barroca com direito a todas as suas curvas e todos os seus conflitos. Nesse momento, ela gostaria de falar com a mãe, mas não fará isso, pois, como boa mãe, ela ficaria muito preocupada e, talvez, até interrompesse sua viagem por uma bobagem sua. Engole o choro e vai até o quarto da mãe. Precisa, nem que seja, sentir o seu cheirinho. Ao abrir o guarda-roupas, descobre um álbum de retratos seu e de sua irmã ainda crianças que a mãe guarda ali. Sentada na cama dos pais ela vasculha aquele documento secreto. Fotos clássicas: sentadas na motoquinha, de beca na formatura do primeiro ano de escola, montadas a cavalo na fazenda do avô... mas uma foto em especial chamou-lhe atenção, aquela em que aparecia vestida de bailarina. Valéria descobriu ali seu verdadeiro semblante, despido de todas as máscaras que criaria no futuro. Ela sonhara ser bailarina, mas como foi que aquele sonho havia acabado? Quando suas colegas lhe disseram que ela estava muito gordinha para dançar. Um tiro. Um inocente tiro disparado conta seu eu mais puro, mais original, mais essencial. Um tiro fatal. A inocente perversidade feminina.
Valéria sentou-se em frente à televisão e, com o controle remoto na mão, começou a selecionar canais: porcaria, porcaria, porcaria, porcaria... chega! Vai para seu quarto ler um pouco de Eça de Queirós. Ela é um pouco Luísa e um pouco Juliana. Um pouco o bem e um pouco o mal. Como todos. Você aí, leitor, também é assim! Tem dentro de si as duas naturezas escondidas sob as muitas máscaras que artesanalmente criou ao longo da vida. Meu Deus! Que dia é amanhã?! Puta-que-pariu! Último prazo para protocolar aquele processo e ainda tem prova para corrigir e entregar esta semana! Imediatamente Eça é lançado de lado e Valéria vorazmente revira sua papelada a procura do processo, a procura das provas. Sua cabeça é um turbilhão, uma confusão. O que fazer primeiro, o presente ou o futuro? O jeito e não pensar e começar logo. Pelo jeito haverá mais uma noite de serão. Ela nem se lembra de que ainda não almoçou, de que apenas comeu um ovo frito. Não lembrará de fazer o jantar também, imersa no grande mar de trabalho que a espera, mas é bom certificar-se de que há bebida energética na geladeira. Ela esquecerá tudo: que terminou o namoro, que está sozinha, que sua vida está um tédio... só trabalho, só trabalho, como uma máquina. Valéria é o fruto da emancipação da mulher; é fruto das lutas feministas do século XX. Mas elas não imaginavam isso. Certamente elas não idealizaram isso.
Leia mais no www.escritordomato.kit.net
Ela levanta, senta na cama, olha o relógio e constata que a manhã se foi. Ontem foi dia de balada. Já não estava muito aí, mas o tempo fechou quando o passado ressuscitou diante dos seus olhos. Não! Chega! Sofrer por uma relação que já deu o que tinha que dar? Valéria vestiu a máscara da “mulher segura” e levantou vôo, indo chorar na sua cela solitária. Um bosta, um bostinha ordinário, um bostinha... adorável! Valéria tem um quê de estética barroca no seu comportamento. Só de pensar chora por aquilo que ela jura não sentir. São máscaras, máscaras que lhe revestem o verdadeiro rosto. São tantas que ela mesma já não sabe qual é o seu verdadeiro semblante. A máscara de mulher, a máscara pequeno-burguesa, a máscara de educadora, a máscara de filha, a máscara de irmã, a máscara de advogada... quem é Valéria? Ela sabe que usa máscaras e acostumou-se principalmente com a máscara do PREDADOR. Ela sabe... pois, em suas duas profissões, assiste a queda de máscaras o tempo todo. O que ela quer da vida é muito claro. É o que todos querem. É o sucesso. Indecifrável, obscura e incerta palavra: sucesso. O que é o sucesso nazareno? Jesus não teria resposta, assim como não teve para a pergunta do seu inquisidor.
Bela e vistosa, com a força das ninfas do campo – cevadas pelos bons alimentos e pelo trabalho constante – ela finalmente consegue levantar-se e caminhar até o banheiro. Ao escovar os dentes, percebe as olheiras e quer morrer. Penteia os cabelos e constata que estão caindo em demasia. Ela está um terror naquela manhã. É isso que ela sente. É assim que ela se sente. Desce até a cozinha e procura alguma coisa bem light para matar a fome naquela manhã – afinal o horário do almoço já se aproxima. Se tomasse um “café-da-manhã” de verdade, viraria uma pipa no final do dia. Merda! Não tem suco de laranja, não tem porra nenhuma de fruta. Pois vejam só: saem de casa o pai, a mãe e a irmã e não têm a hombridade de fazer uma feirinha sequer, deixando “o traste” a morrer de fome. O pior de tudo é que não tem ninguém para ouvir suas reclamações e dramalhões. Droga! Só tem ovos, leite e tamarindo. Ela odeia tamarindo. Vai fazer um ovo frito. Depois que comeu veio o arrependimento: “Se tivesse tomado um copinho de leite teriam sido melhor, menos calorias. Já deveria é ter feito o almoço logo. Tenho que almoçar sozinha mesmo”. Uma semana sozinha é o suficiente para enlouquecer qualquer mulher como Valéria, que precisa de criaturas ao seu redor, mesmo que, quando as tem, pareça não fazer muita questão delas. Alguém que possa ouvir-lhe os gritos e faniquitos já estava bom. Ela não sente vontade de fazer nada, arrumar a cama, almoço, varrer a casa pra quê? Pra quem? Naquele momento, ela é a pessoa mais solitária do mundo. Resolve ligar para a melhor amiga, mas, antes que possa desabafar, começa aquela choradeira. A amiga tem mais problema, ou acha que tem mais problemas do que ela mesmo. Valéria resolve desligar. Aquele papo está enchendo. Será que não tem um cristão nesta cidade com quem se possa ter uma conversa de nível razoável?
Ela sobe para o quarto e, diante da pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, pede à intercessora dos homens junto a Deus que lhe ajude para que possa terminar seu curso de direito e iniciar uma nova carreira, em uma nova cidade, onde ela possa ter uma vida mais feliz, onde as pessoas possam entendê-la melhor, onde ela possa crescer, onde não faça tanto calor que faz a maquiagem borrar, suar a roupa, mau cheiro... Oh, minha Nossa Senhora, me ajude! Bebida energética já nem faz mais efeito, nos seus serões para estudar ou corrigir provas. Já pensou até em dar uns “tiros” – daqueles tiros sem arma – para ressuscitar após o cansaço mortal, mas não foi essa formação que ela recebeu. Não combina com ela. Olhos sem palpebras perscrutavam sua vida. Ela não decepcionaria sua santa protetora.
A estética barroca volta a tomar conta dessa mulher. Será que existe reencarnação? Na igreja ensinavam que isso era bobagem. Mas se não existisse, o que ela fizera contra Deus para despertar sua ira? Por que ela sofria tanto? E, se existisse, deveria ter sido uma pessoa muito ruim na vida passada, que fazia as pessoas que a amavam sofrer bastante. Então, se fosse assim, bem feito para ela. Tinha mais era que sofrer. Ela lembra mais uma vez do ex-namorado e as lágrimas começam a sair dos seus olhos sem que as queira. Meu Deus! Ela nunca seria nada na vida! Nasceu para ser trouxa! Nasceu para dar valor a quem não a valorizava! Um choro convulsivo toma conta da bela e jovem mulher. Uma pérola. Uma pérola barroca com direito a todas as suas curvas e todos os seus conflitos. Nesse momento, ela gostaria de falar com a mãe, mas não fará isso, pois, como boa mãe, ela ficaria muito preocupada e, talvez, até interrompesse sua viagem por uma bobagem sua. Engole o choro e vai até o quarto da mãe. Precisa, nem que seja, sentir o seu cheirinho. Ao abrir o guarda-roupas, descobre um álbum de retratos seu e de sua irmã ainda crianças que a mãe guarda ali. Sentada na cama dos pais ela vasculha aquele documento secreto. Fotos clássicas: sentadas na motoquinha, de beca na formatura do primeiro ano de escola, montadas a cavalo na fazenda do avô... mas uma foto em especial chamou-lhe atenção, aquela em que aparecia vestida de bailarina. Valéria descobriu ali seu verdadeiro semblante, despido de todas as máscaras que criaria no futuro. Ela sonhara ser bailarina, mas como foi que aquele sonho havia acabado? Quando suas colegas lhe disseram que ela estava muito gordinha para dançar. Um tiro. Um inocente tiro disparado conta seu eu mais puro, mais original, mais essencial. Um tiro fatal. A inocente perversidade feminina.
Valéria sentou-se em frente à televisão e, com o controle remoto na mão, começou a selecionar canais: porcaria, porcaria, porcaria, porcaria... chega! Vai para seu quarto ler um pouco de Eça de Queirós. Ela é um pouco Luísa e um pouco Juliana. Um pouco o bem e um pouco o mal. Como todos. Você aí, leitor, também é assim! Tem dentro de si as duas naturezas escondidas sob as muitas máscaras que artesanalmente criou ao longo da vida. Meu Deus! Que dia é amanhã?! Puta-que-pariu! Último prazo para protocolar aquele processo e ainda tem prova para corrigir e entregar esta semana! Imediatamente Eça é lançado de lado e Valéria vorazmente revira sua papelada a procura do processo, a procura das provas. Sua cabeça é um turbilhão, uma confusão. O que fazer primeiro, o presente ou o futuro? O jeito e não pensar e começar logo. Pelo jeito haverá mais uma noite de serão. Ela nem se lembra de que ainda não almoçou, de que apenas comeu um ovo frito. Não lembrará de fazer o jantar também, imersa no grande mar de trabalho que a espera, mas é bom certificar-se de que há bebida energética na geladeira. Ela esquecerá tudo: que terminou o namoro, que está sozinha, que sua vida está um tédio... só trabalho, só trabalho, como uma máquina. Valéria é o fruto da emancipação da mulher; é fruto das lutas feministas do século XX. Mas elas não imaginavam isso. Certamente elas não idealizaram isso.
Leia mais no www.escritordomato.kit.net