Post by Paulo Henrique Alves Machado on Jun 23, 2007 18:53:26 GMT -5
Existem demônios. Há anjos também, mas as pessoas preferem os demônios. Quantos comprariam um livro sobre anjos? Quantos comprariam um, sobre demônios? Quantos iriam ao cinema pra ver anjos ajudando pessoas? E quantos vão para ver demônios atormentando a espécie humana?
Imaginemos uma manchete: “Família se emociona ao adquirir a casa própria”. É, no mínimo, careta. Mas “Neto mata a avó para herdar bicicleta” dá uma vontade de ler, não é?
Eu só sei que voltávamos, Maria e eu, de um jantar naquela sexta-feira. Não, não nos divertíamos; trabalhávamos em um buffet. Eu tinha 19 e Maria 23; eu era garçon e Maria auxiliar de cozinha. Ela era deliciosa e eu, um jovem faminto. A noite estava muito fria e deserta, além de um denso nevoeiro que cobria a cidade de Três Lagoas. Na rua não se via viva-alma e o relógio do centro marcava duas horas da madrugada. Na estação, a última composição já havia saído e a próxima ainda demoraria.
Apesar do frio, eu voltava feliz: com gorjeta no bolso e ao lado de Maria. Eu fazia companhia a ela, em contrapartida, ela suportava minhas investidas. A moça era medrosa, mas o que presenciamos foi de meter medo a qualquer um. Quando cruzávamos a Praça das Bandeiras, Maria parecia não ter resistido ao frio e estatelou ali, parecendo congelada.
- Anda, Maria! Parar é pior, que o corpo esfria!
- Perai!
- Quê foi?
- O sino da Igrejinha tá tocando?
Pois é! O sino da Igrejinha de Santo Antônio tocava um discreto e longo toque que cortava o silêncio da madrugada. Estatelamos ali os dois a ouvir o sinistro e impróprio sino.
- Legião das arma!
Senti meus cabelos arrepiando. Quem, por Deus, havia dito aquilo? Os olhos de Maria quase caíram fora do rosto e a pobre já não sentiu as pernas.
- Os condenado do inferno e um preto que, com seu único braço, conduz essa legião de armas, pela escuridão da noite.
Quando consegui voltar meu rosto, vi um senhor alto e magro, porém forte, com boné de charreteiro na cabeça e um cachecol que lhe cobria do pescoço até o nariz.
Naquele tempo, corriam pela cidade rumores de que o lobisomem andava a solta pela madrugadas da cidade. Havia muito medo, sobretudo na periferia, e o medo é algo contagioso. Não era preciso muito para meter medo à Maria, mas confesso que mesmo eu, que não dava crédito aos boatos, tive medo de estar diante do monstro.
- Isso é assombração, meus fi! Vamo andano que eu conto.
Acompanhamos o estranho no nosso trajeto, mesmo suspeitando de suas intenções.
O homem contou que, antes da ferrovia chegar à região, os índios Ofaié viviam ali e tinha uma religião muito rica no aspecto sobrenatural, com seus encantamentos e rituais mágicos. Acreditavam, por exemplo, que tudo tinha duas origens: vinha da terra ou vinha das árvores. Era como se o céu fosse no interior da terra e o inferno no interior das árvores, apesar de ser quase impossível alguma comparação. Os primeiros Ofaiés, segundo eles, tinham vindo do interior da terra.
Durante a guerra do Paraguai, um soldado desertor teria anotado detalhes sobre essa religião. Ele teria vivido seus últimos dias entre os indígenas e, tendo falecido, deixou para eles suas anotações: uma pequena pilha de papeis pardos e amarrotados, mas que continha todas as tradições que o desertor pôde aprender durante sua estadia.
Quando os mineiros chegaram à região, onde futuramente seria a cidade, conheceram os manuscritos e adotaram as práticas religiosas prescritas nele, tendo se tornado tão popular quanto os ritos católicos. Muitas décadas mais tarde, um vigário da região teria considerado oficialmente as práticas como heréticas e recolhido os papéis. Conta-se que eles foram trancados em uma caixa de bronze e guardados na sacristia da Igrejinha de Santo Antônio, a espera de uma missão que os levasse para o Vaticano.
Porém, um jovem comerciante sírio, entregue a ambição de fazer-se rico em pouco tempo e tendo tomado conhecimento de que o manuscrito continha o “segredo da fortuna”, contratou um facínora para subtrair a relíquia da guarda da igreja. Entretanto, essa igreja era guardada por uma atalaia singular: um jovem homem negro, cujo braço fora-lhe amputado por um homem perverso que se dizia “seu proprietário”. Após o ato brutal, a comunidade o resgatou dando-lhe como casa a própria Igrejinha, da qual ele cuidava com carinho e muito zelo. Seu nome era José Maria de Jesus (um sobrenome arranjado, certamente, já que todo o conjunto reporta à sagrada família) era o sacristão residente, fazia de tudo e dormia embolado na minúscula sacristia. A morada, no entanto, dava-lhe muito orgulho, pois dizia que sua casa era na “portinha do céu”. Todos diziam quer era um anjinho de Deus, sem boca para responder, ou maltratar. Ás ave-marias, domingos e velórios, seu único e vigoroso braço fazia soar o sino a quase uma légua. Era calado e tímido, mas um homem de fé, para quem a oração era um dever constante. Mas nosso mundo não gosta dos bons e o bondoso homem foi cruelmente assassinado na sacristia, enquanto dormia. O mal-feitor levou consigo duas caixas: a da oferta e a que continha o manuscrito.
O sírio a recebeu longe dali num porto do Rio Paraná, de onde o assassino seguiria para o Paraguai.
O crime abalou o pequeno lugar que velou com pesar o pobre sacristão; o sírio, pelo visto, conseguiu o que queria, tendo se tornado senhor de grandes bens e tendo entrado para a história do lugar, mas até hoje o sacristão volta para tocar o sino da igrejinha para as almas que foram condenadas ao inferno antes do juízo final: os assassinos, os que roubam os órfãos inocentes, os agiotas e os soberbos.
Quando aquele senhor terminou de contar essa história, Maria e eu estávamos petrificados. Ele falara o tempo todo, de forma que, ao percebermos, já estávamos nos confins do bairro Nossa Senhora Aparecida. A escuridão nos banhava de medo e congelava mais que o frio. Parecia haver algo ali.
Foi então que do meio do nevoeiro saiu uma fera semelhante a um porco, porém mais ágil e peluda. Eu confesso que achei que era meu fim, Maria encostou-se a mim e desabou, mas a fera queria mesmo era aquele senhor que nos havia contado uma estranha história.
A criatura preparou o bote e o atacou; ele defendeu-se colocando um braço à frente da jugular. Ela, porém, arrancou-o com facilidade e o levou para a escuridão, sumindo-se enfim. O homem ficou ali caído, acompanhando a mim e Maria, que nos entregamos ao medo totalmente. Eu acreditei que ele estava morto, dada a violência com que fora mutilado, mas o homem começou a se mexer e a levantar-se com naturalidade.
- Como você está, amigo?
- Tô bem.
- E o braço?
- Era uma prótese. O braço mermo, eu já perdi faiz hora.
- O que era aquilo?
- O dimonho!
Maria parecia morta e eu estava atônito olhando aquele homem, pensando sobre o ocorrido. Só agora é que eu pude ver seu rosto negro que já não se ocultava sob o boné e o cachecol. Ele olhava firme para algo atrás de mim. Quando, voltando-me, vi uma imensa procissão desfilava através do nevoeiro que se abria, muito maior que qualquer uma que eu já tenha visto: “a procissão dos penados”. Foi então que ele retirou debaixo da sua capa um sinete e o fez vibrar. A procissão o seguiu, deixando-nos ali, entregues ao medo enlouquecedor.
Despertei na minha cama. Não. Não foi um sonho, mas como eu havia chegado ali? Eu não me lembrava de ter andado nem mais um passo até chegar a casa! E Maria? O que fora feito dela? Peguei a bicicleta e fui à sua casa imediatamente. Ao chegar, seus parentes disseram-me que a garota estava fora de seu normal, empenhada em uma novena desde que chegara durante a madrugada. Eu quis vê-la e foi deveras enigmático ver a pobre Maria , que não era de religião, ajoelhada, com véu na cabeça, terço nas mãos, rezando, alheia a tudo a sua volta.
(Paulo Henrique Muhammad)
Imaginemos uma manchete: “Família se emociona ao adquirir a casa própria”. É, no mínimo, careta. Mas “Neto mata a avó para herdar bicicleta” dá uma vontade de ler, não é?
Eu só sei que voltávamos, Maria e eu, de um jantar naquela sexta-feira. Não, não nos divertíamos; trabalhávamos em um buffet. Eu tinha 19 e Maria 23; eu era garçon e Maria auxiliar de cozinha. Ela era deliciosa e eu, um jovem faminto. A noite estava muito fria e deserta, além de um denso nevoeiro que cobria a cidade de Três Lagoas. Na rua não se via viva-alma e o relógio do centro marcava duas horas da madrugada. Na estação, a última composição já havia saído e a próxima ainda demoraria.
Apesar do frio, eu voltava feliz: com gorjeta no bolso e ao lado de Maria. Eu fazia companhia a ela, em contrapartida, ela suportava minhas investidas. A moça era medrosa, mas o que presenciamos foi de meter medo a qualquer um. Quando cruzávamos a Praça das Bandeiras, Maria parecia não ter resistido ao frio e estatelou ali, parecendo congelada.
- Anda, Maria! Parar é pior, que o corpo esfria!
- Perai!
- Quê foi?
- O sino da Igrejinha tá tocando?
Pois é! O sino da Igrejinha de Santo Antônio tocava um discreto e longo toque que cortava o silêncio da madrugada. Estatelamos ali os dois a ouvir o sinistro e impróprio sino.
- Legião das arma!
Senti meus cabelos arrepiando. Quem, por Deus, havia dito aquilo? Os olhos de Maria quase caíram fora do rosto e a pobre já não sentiu as pernas.
- Os condenado do inferno e um preto que, com seu único braço, conduz essa legião de armas, pela escuridão da noite.
Quando consegui voltar meu rosto, vi um senhor alto e magro, porém forte, com boné de charreteiro na cabeça e um cachecol que lhe cobria do pescoço até o nariz.
Naquele tempo, corriam pela cidade rumores de que o lobisomem andava a solta pela madrugadas da cidade. Havia muito medo, sobretudo na periferia, e o medo é algo contagioso. Não era preciso muito para meter medo à Maria, mas confesso que mesmo eu, que não dava crédito aos boatos, tive medo de estar diante do monstro.
- Isso é assombração, meus fi! Vamo andano que eu conto.
Acompanhamos o estranho no nosso trajeto, mesmo suspeitando de suas intenções.
O homem contou que, antes da ferrovia chegar à região, os índios Ofaié viviam ali e tinha uma religião muito rica no aspecto sobrenatural, com seus encantamentos e rituais mágicos. Acreditavam, por exemplo, que tudo tinha duas origens: vinha da terra ou vinha das árvores. Era como se o céu fosse no interior da terra e o inferno no interior das árvores, apesar de ser quase impossível alguma comparação. Os primeiros Ofaiés, segundo eles, tinham vindo do interior da terra.
Durante a guerra do Paraguai, um soldado desertor teria anotado detalhes sobre essa religião. Ele teria vivido seus últimos dias entre os indígenas e, tendo falecido, deixou para eles suas anotações: uma pequena pilha de papeis pardos e amarrotados, mas que continha todas as tradições que o desertor pôde aprender durante sua estadia.
Quando os mineiros chegaram à região, onde futuramente seria a cidade, conheceram os manuscritos e adotaram as práticas religiosas prescritas nele, tendo se tornado tão popular quanto os ritos católicos. Muitas décadas mais tarde, um vigário da região teria considerado oficialmente as práticas como heréticas e recolhido os papéis. Conta-se que eles foram trancados em uma caixa de bronze e guardados na sacristia da Igrejinha de Santo Antônio, a espera de uma missão que os levasse para o Vaticano.
Porém, um jovem comerciante sírio, entregue a ambição de fazer-se rico em pouco tempo e tendo tomado conhecimento de que o manuscrito continha o “segredo da fortuna”, contratou um facínora para subtrair a relíquia da guarda da igreja. Entretanto, essa igreja era guardada por uma atalaia singular: um jovem homem negro, cujo braço fora-lhe amputado por um homem perverso que se dizia “seu proprietário”. Após o ato brutal, a comunidade o resgatou dando-lhe como casa a própria Igrejinha, da qual ele cuidava com carinho e muito zelo. Seu nome era José Maria de Jesus (um sobrenome arranjado, certamente, já que todo o conjunto reporta à sagrada família) era o sacristão residente, fazia de tudo e dormia embolado na minúscula sacristia. A morada, no entanto, dava-lhe muito orgulho, pois dizia que sua casa era na “portinha do céu”. Todos diziam quer era um anjinho de Deus, sem boca para responder, ou maltratar. Ás ave-marias, domingos e velórios, seu único e vigoroso braço fazia soar o sino a quase uma légua. Era calado e tímido, mas um homem de fé, para quem a oração era um dever constante. Mas nosso mundo não gosta dos bons e o bondoso homem foi cruelmente assassinado na sacristia, enquanto dormia. O mal-feitor levou consigo duas caixas: a da oferta e a que continha o manuscrito.
O sírio a recebeu longe dali num porto do Rio Paraná, de onde o assassino seguiria para o Paraguai.
O crime abalou o pequeno lugar que velou com pesar o pobre sacristão; o sírio, pelo visto, conseguiu o que queria, tendo se tornado senhor de grandes bens e tendo entrado para a história do lugar, mas até hoje o sacristão volta para tocar o sino da igrejinha para as almas que foram condenadas ao inferno antes do juízo final: os assassinos, os que roubam os órfãos inocentes, os agiotas e os soberbos.
Quando aquele senhor terminou de contar essa história, Maria e eu estávamos petrificados. Ele falara o tempo todo, de forma que, ao percebermos, já estávamos nos confins do bairro Nossa Senhora Aparecida. A escuridão nos banhava de medo e congelava mais que o frio. Parecia haver algo ali.
Foi então que do meio do nevoeiro saiu uma fera semelhante a um porco, porém mais ágil e peluda. Eu confesso que achei que era meu fim, Maria encostou-se a mim e desabou, mas a fera queria mesmo era aquele senhor que nos havia contado uma estranha história.
A criatura preparou o bote e o atacou; ele defendeu-se colocando um braço à frente da jugular. Ela, porém, arrancou-o com facilidade e o levou para a escuridão, sumindo-se enfim. O homem ficou ali caído, acompanhando a mim e Maria, que nos entregamos ao medo totalmente. Eu acreditei que ele estava morto, dada a violência com que fora mutilado, mas o homem começou a se mexer e a levantar-se com naturalidade.
- Como você está, amigo?
- Tô bem.
- E o braço?
- Era uma prótese. O braço mermo, eu já perdi faiz hora.
- O que era aquilo?
- O dimonho!
Maria parecia morta e eu estava atônito olhando aquele homem, pensando sobre o ocorrido. Só agora é que eu pude ver seu rosto negro que já não se ocultava sob o boné e o cachecol. Ele olhava firme para algo atrás de mim. Quando, voltando-me, vi uma imensa procissão desfilava através do nevoeiro que se abria, muito maior que qualquer uma que eu já tenha visto: “a procissão dos penados”. Foi então que ele retirou debaixo da sua capa um sinete e o fez vibrar. A procissão o seguiu, deixando-nos ali, entregues ao medo enlouquecedor.
Despertei na minha cama. Não. Não foi um sonho, mas como eu havia chegado ali? Eu não me lembrava de ter andado nem mais um passo até chegar a casa! E Maria? O que fora feito dela? Peguei a bicicleta e fui à sua casa imediatamente. Ao chegar, seus parentes disseram-me que a garota estava fora de seu normal, empenhada em uma novena desde que chegara durante a madrugada. Eu quis vê-la e foi deveras enigmático ver a pobre Maria , que não era de religião, ajoelhada, com véu na cabeça, terço nas mãos, rezando, alheia a tudo a sua volta.
(Paulo Henrique Muhammad)