Post by Paulo Henrique Alves Machado on Oct 4, 2005 8:22:12 GMT -5
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)
Eu conheci essa poesia na época da faculdade. Meus professores (todos eles altamente capacitados) apresentavam-na como um modelo de poesia moderna. Eu a achava absolutamente ridícula e muito mais ridículas aquelas pessoas, tão eruditas, dissertando longos minutos sobre tamanha bobagem. Eu cheguei mesmo a odiar essa poesia.
Um dia, tive de fazer uma viagem. O destino era Nova Xavantina no Mato Grosso (naquela época, eu moravam em Três Lagoas – MS), mas eu teria que fazer baldeação em Jataí. O problema é que eu chegara à meia-noite e o outro ônibus só sairia às cinco da manhã. Eu fiquei ali, pela rodoviária por um tempo (o dinheiro era curto; não dava para uma pensão), mas depois enjoei e resolvi andar pela cidade. Logo no início da minha caminhada, percebi que aquela cidade, de dimensões medianas, ainda guardava hábitos típicos do interior; pois, àquelas horas, já não havia nem um pobre bêbado perambulando pela rua; na verdade não havia nem cachorro na rua. Ao que parecia, todos já estavam recolhidos descansando.
Perambulei muito pela cidade, até que cansei e sentei em uma pequena praça em algum lugar que eu nem saberiam mais dizer onde era. O fato é que repentinamente um galo cantou lá pelas tantas. Era um canto alto rompendo o silêncio da noite; há muito que eu não ouvia um canto de galo. Cantou uma, cantou duas, cantou três e outro galo respondeu, mas um terceiro achou que era com ele e gritou respostando. Aqueles galos, pelo visto, não sabiam os nomes de seus interlocutores, de forma que começou uma verdadeira linha cruzada: cruza pra cá, cruza pra lá, os ânimos muito alterados, naquela disputa de galos pela sua masculinidade – acho eu – e a manhã começou a surgir. Primeiro era frágil, quase imperceptível, mas em pouco tempo tomou força e surgiu radiante.
Entendi a poesia. Achei linda e percebi que somente quem vivencia é capaz de entender esses poetas.
Minhas sinceras homenagens a João Cabral de Melo Neto, falecido em 09 de outubro de 1999.
(Paulo Henrique Alves Machado é professor na rede estadual de ensino)
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)
Eu conheci essa poesia na época da faculdade. Meus professores (todos eles altamente capacitados) apresentavam-na como um modelo de poesia moderna. Eu a achava absolutamente ridícula e muito mais ridículas aquelas pessoas, tão eruditas, dissertando longos minutos sobre tamanha bobagem. Eu cheguei mesmo a odiar essa poesia.
Um dia, tive de fazer uma viagem. O destino era Nova Xavantina no Mato Grosso (naquela época, eu moravam em Três Lagoas – MS), mas eu teria que fazer baldeação em Jataí. O problema é que eu chegara à meia-noite e o outro ônibus só sairia às cinco da manhã. Eu fiquei ali, pela rodoviária por um tempo (o dinheiro era curto; não dava para uma pensão), mas depois enjoei e resolvi andar pela cidade. Logo no início da minha caminhada, percebi que aquela cidade, de dimensões medianas, ainda guardava hábitos típicos do interior; pois, àquelas horas, já não havia nem um pobre bêbado perambulando pela rua; na verdade não havia nem cachorro na rua. Ao que parecia, todos já estavam recolhidos descansando.
Perambulei muito pela cidade, até que cansei e sentei em uma pequena praça em algum lugar que eu nem saberiam mais dizer onde era. O fato é que repentinamente um galo cantou lá pelas tantas. Era um canto alto rompendo o silêncio da noite; há muito que eu não ouvia um canto de galo. Cantou uma, cantou duas, cantou três e outro galo respondeu, mas um terceiro achou que era com ele e gritou respostando. Aqueles galos, pelo visto, não sabiam os nomes de seus interlocutores, de forma que começou uma verdadeira linha cruzada: cruza pra cá, cruza pra lá, os ânimos muito alterados, naquela disputa de galos pela sua masculinidade – acho eu – e a manhã começou a surgir. Primeiro era frágil, quase imperceptível, mas em pouco tempo tomou força e surgiu radiante.
Entendi a poesia. Achei linda e percebi que somente quem vivencia é capaz de entender esses poetas.
Minhas sinceras homenagens a João Cabral de Melo Neto, falecido em 09 de outubro de 1999.
(Paulo Henrique Alves Machado é professor na rede estadual de ensino)