Post by alexandrepinela on Jun 7, 2005 5:26:46 GMT -5
Do diário em forma de mini-conto, ditado, de José Lobbo Neto, a que eu, na minha humilde interpretação, chamei: Lara vs. Clara.
Cheguei tarde a casa, depois de um dia enfadonho na empresa. O mais interminável da semana. Lara já dormia profundamente. Pude vê-la inerte, através da porta do quarto semi-aberta. Descarregava suavemente o peso do seu corpo, como que isenta de matéria. Invejei-lhe o sono.
Fui à cozinha para fazer uns ovos mexidos, quando tocou o telemóvel.
- Estou? Olá Clara, que há? – era a minha secretária. Ouvi-lhe o respirar palpitante.
- É melhor vir imediatamente para o escritório…
- Escritório! – Apercebi-me de qualquer coisa estranha, muito estranha –Que faz você… a estas horas… - tencionava perguntar-lhe mais qualquer coisa quando ouvi o zumbido de corte de ligação. Passou-me uma corrente fria pela espinha e materializaram-se na minha imaginação cenas clichés de filmes policiais, onde alguém é assassinado, deixando suspenso o seu interlocutor, no outro extremo da linha telefónica.
Apaguei imediatamente o bico do fogão e dirigi-me para a porta de acesso à garagem. No percurso, vindo do quarto, chegou-me som abafado de alguém que se move entre almofadas. Lara devia ter acordado, mas não permiti deter-me por um segundo. Já só tinha na minha mente imagens desordenadas de cenários grotescos. A mobília do escritório coberta de sangue e madeixas de cabelo de mulher espalhadas sobre os ecrãs dos computadores, muitas com fragmentos de escalpe fresco!
***
Rodei a maçaneta com o coração a cento e sessenta por minuto. Nada de anormal na sala de espera. Havia contudo luz no meu gabinete. Vi uma sombra reflectida no vidro da divisória…
- Lara!- chamei, timidamente, com um pé fora do limiar da porta. Em situação de perigo eminente era só dar meia volta e desatar a correr para rua.
- Bolas! Clara… - era o mau hábito meu de chamar o nome da minha mulher à minha secretária. E ali, no meio do imprevisível, voltou a acontecer! Isto foi o que me ocorreu na altura, porque estava confuso e troquei todas as ideias. Na verdade, frequente era chamar Clara à minha mulher, que se chamava Lara. É escusado registar com muitos pormenores o mau ambiente que estes meus lapsos continuados imprimiram ao nosso casamento. A minha mulher pôs na cabeça que eu tinha um caso com a secretária, ou que, pelo menos, pensava nisso o tempo todo. Ora isto é a maior injustiça do mundo, pois eu não desejei a Clara nem por um segundo. Ela fumava e estava constantemente mastigar pastilhas elásticas. E às vezes fazia pequenos balões. Claro que não se atrevia na minha presença, mas apercebi-me disso uma vez que a observei no café onde almoçava todos os dias, sem que ela me visse. Mas para a minha mulher tais argumentos de pouco serviam. Convencera-se que as características que eu não queria ver nela, desejava nas outras. Que como já tinha uma esposa como sempre idealizara, agora só faltava preencher a minha vida com as amantes e os vícios que eu não tolerava dentro de casa. Um perfeito disparate. Mas como Lara estava a entrar nos quarenta e passava o tempo em casa, a telefonar às amigas e a ler Livros do Paulo Coelho, nunca encarei a coisa muito a sério. Um dia sugeri-lhe que consultasse um psicoterapeuta e dei-lhe o número do médico da filha do Bernardino, lá do armazém. Depois, não mais voltei a abordar o assunto. Ocorre-me, por vezes, que nem terá marcado a primeira consulta.
Mas ali deu-se o inverso do que era usual acontecer. Às três da madrugada, inesperadamente no meu escritório e com um cenário de filme policial na minha cabeça, chamei Lara à Clara. Ou seja, quis dirigir-me à minha secretária e saiu-me da garganta o nome da minha mulher. Depois só me lembro de ter sentido uma pancada na cabeça... e antes disso, talvez só uma fracção de segundo antes, de ter desejado que a minha mulher ali estivesse, porque por uma vez em muito tempo, teria gostado dos meus lapsos. Por constatar que o marido era, apenas, um despistado. E principalmente por pensar que, por vezes também o seu nome saia das cordas vocais do marido, quando isso não constituía intenção.
Das duas uma: ou não passava de um fenómeno inócuo de sentimentos e palpitações, ou então, se estes incidentes revelam verdadeiramente alguma coisa, essa coisa, naquela noite, chamava-se Lara.
***
Hoje estou ligado a uma máquina que me mantém vivo. Só consigo mexer os olhos e a boca, e desejo morrer todos os dias, logo depois de acordar. Já não sei dizer com rigor quantos anos passaram depois dos acontecimentos que relatei. Só posso garantir que, desde então, nunca abandonei esta sala. E isso torna-me quase tão louco e inseguro das minhas certezas, que penso, por vezes, que a história que vos contei nunca teve lugar na realidade. Que terá sido mais um daqueles sonhos às avessas, que não me deixam saber ao certo onde acabou o meu passado.
Isto é tudo muito estranho, acreditem. E quase que era lindo e tentador que terminasse com algo que se relacionasse com o inicio. Uma ironia subtil, uma travessura do destino com ou sem moral. Mas tal não vai acontecer. Isto não faz mesmo sentido, pelo menos para mim.
Fim
Cheguei tarde a casa, depois de um dia enfadonho na empresa. O mais interminável da semana. Lara já dormia profundamente. Pude vê-la inerte, através da porta do quarto semi-aberta. Descarregava suavemente o peso do seu corpo, como que isenta de matéria. Invejei-lhe o sono.
Fui à cozinha para fazer uns ovos mexidos, quando tocou o telemóvel.
- Estou? Olá Clara, que há? – era a minha secretária. Ouvi-lhe o respirar palpitante.
- É melhor vir imediatamente para o escritório…
- Escritório! – Apercebi-me de qualquer coisa estranha, muito estranha –Que faz você… a estas horas… - tencionava perguntar-lhe mais qualquer coisa quando ouvi o zumbido de corte de ligação. Passou-me uma corrente fria pela espinha e materializaram-se na minha imaginação cenas clichés de filmes policiais, onde alguém é assassinado, deixando suspenso o seu interlocutor, no outro extremo da linha telefónica.
Apaguei imediatamente o bico do fogão e dirigi-me para a porta de acesso à garagem. No percurso, vindo do quarto, chegou-me som abafado de alguém que se move entre almofadas. Lara devia ter acordado, mas não permiti deter-me por um segundo. Já só tinha na minha mente imagens desordenadas de cenários grotescos. A mobília do escritório coberta de sangue e madeixas de cabelo de mulher espalhadas sobre os ecrãs dos computadores, muitas com fragmentos de escalpe fresco!
***
Rodei a maçaneta com o coração a cento e sessenta por minuto. Nada de anormal na sala de espera. Havia contudo luz no meu gabinete. Vi uma sombra reflectida no vidro da divisória…
- Lara!- chamei, timidamente, com um pé fora do limiar da porta. Em situação de perigo eminente era só dar meia volta e desatar a correr para rua.
- Bolas! Clara… - era o mau hábito meu de chamar o nome da minha mulher à minha secretária. E ali, no meio do imprevisível, voltou a acontecer! Isto foi o que me ocorreu na altura, porque estava confuso e troquei todas as ideias. Na verdade, frequente era chamar Clara à minha mulher, que se chamava Lara. É escusado registar com muitos pormenores o mau ambiente que estes meus lapsos continuados imprimiram ao nosso casamento. A minha mulher pôs na cabeça que eu tinha um caso com a secretária, ou que, pelo menos, pensava nisso o tempo todo. Ora isto é a maior injustiça do mundo, pois eu não desejei a Clara nem por um segundo. Ela fumava e estava constantemente mastigar pastilhas elásticas. E às vezes fazia pequenos balões. Claro que não se atrevia na minha presença, mas apercebi-me disso uma vez que a observei no café onde almoçava todos os dias, sem que ela me visse. Mas para a minha mulher tais argumentos de pouco serviam. Convencera-se que as características que eu não queria ver nela, desejava nas outras. Que como já tinha uma esposa como sempre idealizara, agora só faltava preencher a minha vida com as amantes e os vícios que eu não tolerava dentro de casa. Um perfeito disparate. Mas como Lara estava a entrar nos quarenta e passava o tempo em casa, a telefonar às amigas e a ler Livros do Paulo Coelho, nunca encarei a coisa muito a sério. Um dia sugeri-lhe que consultasse um psicoterapeuta e dei-lhe o número do médico da filha do Bernardino, lá do armazém. Depois, não mais voltei a abordar o assunto. Ocorre-me, por vezes, que nem terá marcado a primeira consulta.
Mas ali deu-se o inverso do que era usual acontecer. Às três da madrugada, inesperadamente no meu escritório e com um cenário de filme policial na minha cabeça, chamei Lara à Clara. Ou seja, quis dirigir-me à minha secretária e saiu-me da garganta o nome da minha mulher. Depois só me lembro de ter sentido uma pancada na cabeça... e antes disso, talvez só uma fracção de segundo antes, de ter desejado que a minha mulher ali estivesse, porque por uma vez em muito tempo, teria gostado dos meus lapsos. Por constatar que o marido era, apenas, um despistado. E principalmente por pensar que, por vezes também o seu nome saia das cordas vocais do marido, quando isso não constituía intenção.
Das duas uma: ou não passava de um fenómeno inócuo de sentimentos e palpitações, ou então, se estes incidentes revelam verdadeiramente alguma coisa, essa coisa, naquela noite, chamava-se Lara.
***
Hoje estou ligado a uma máquina que me mantém vivo. Só consigo mexer os olhos e a boca, e desejo morrer todos os dias, logo depois de acordar. Já não sei dizer com rigor quantos anos passaram depois dos acontecimentos que relatei. Só posso garantir que, desde então, nunca abandonei esta sala. E isso torna-me quase tão louco e inseguro das minhas certezas, que penso, por vezes, que a história que vos contei nunca teve lugar na realidade. Que terá sido mais um daqueles sonhos às avessas, que não me deixam saber ao certo onde acabou o meu passado.
Isto é tudo muito estranho, acreditem. E quase que era lindo e tentador que terminasse com algo que se relacionasse com o inicio. Uma ironia subtil, uma travessura do destino com ou sem moral. Mas tal não vai acontecer. Isto não faz mesmo sentido, pelo menos para mim.
Fim