Post by Paulo Henrique Alves Machado on Nov 15, 2004 21:35:24 GMT -5
Nada se compara às lembranças ou àquilo que fantasiamos em nossa imaginação. Sonhar, recordar, suspirar é delicioso, ainda que seja sob a máscara do sofrimento. Hoje, creio que não trocaria um bom sonho, ou mesmo uma boa lembrança pela melhor das realidades. Quando terminei o colegial em 1988, minha turma prometeu que realizaria uma festa, dez anos depois, para reencontrarmo-nos.
Éramos a mais intrépida turma de concluintes que jamais houve naquela instituição. Vivíamos nosso momento “guerrilheiro” e aquela era “nossa revolução”. Reginaldo era o líder, nosso “Che”, odiado e respeitado pelas forças reacionárias. Sem muito discernimento, mas obedecendo ao ímpeto rebelde, seguíamo-lo com uma agressividade e irreverência que assustava qualquer inimigo. Ele, sempre calmo e risonho, tinha uma astúcia capaz de antecipar os movimentos do inimigo – representado, ali, pela senhora diretora e alguns professores do seu secto. As represálias eram desafios saborosos, que nos deliciava ao planejar contra-ataques. Não havia, no entanto, prazer maior que as vitórias – comemoradas com barulho e euforia.
No baile de formatura, houve uma tristeza jamais vista. O “Esquadrão Imbatível” estava desmantelado. Já não havia uma força contra a qual lutar. O destino nos separava. Choramos, bebemos, cantamos, realizamos nossa última arruaça juntos. Não havia recurso contra aquilo. Restou-nos apenas uma esperança: encontrarmo-nos dez anos depois.
Passou-se o tempo e o “Esquadrão Imbatível” era apenas uma lembrança, apenas história. Cada qual seguiu seu caminho, onde muitas vezes a estrada era longa e o fim distante. Quanto a mim, encontrava-me em um quarto de pensão numa cidadezinha do interior, refugiado dos credores e de três ex-esposas. Já não pensava mais na promessa feita há dezesseis anos, mas minha mãe – única pessoa em que confiava meu paradeiro – ligou-me, certo dia, dizendo que me procurara alguns ex-colegas de escola e que faziam questão da minha presença em uma certa festa. A notícia reavivou em mim a memória da promessa e a ansiedade contagiou-me. Eu não vivia um dos melhores momentos da vida, mas rever os antigos companheiros pareceu-me um importante alento para minhas dores.
Numa noite de chuva e num clube chamado DA SAUDADE, realizou-se o esperado evento, após dezesseis anos da nossa dramática despedida. Um táxi deixou-me na porta do salão. Entrei. A recepcionista deu-me um crachá com meu nome e um botão-de-rosa. Eu olhava tudo muito admirado: Como o “Esquadrão Imbatível” estava mudado! Buffet, recepcionistas, orquestra como nunca tivemos nem no dia da formatura!
Dei de cara com um sujeito muito alto e gordo, que exclamou com um gesto expansivo:
- Ricardo, seu canalha, por onde você tem andado?
- Trabalhando. Fiz sem ter muito que dizer.
- Venha comigo!
Era o Reginaldo. Eu só o sabia por causa do crachá, mas o segui, mesmo assim. Havia muita gente e, sempre que encontrávamos alguém, apresentava me enaltecendo por fatos que não me lembro de terem acontecido. Poucos eram meus companheiros, a maioria eu jamais vira, ou não me lembrava. Raquel, por quem eu fora loucamente apaixonado, tornara-se doutora em análise do discurso político; vivera cinco anos na França, onde fizera seu doutorado e conhecera seu ex-marido Jean Paul – não há muito sentido em dizer “meu ex” não é? Se é “ex” não pode ser seu; Márcia era publicitária e viajara por muitos paises do mundo proferindo suas conferências; Luiz tinha um jornal e uma emissora de rádio; Jardel representava uma importante multinacional; Érica ganhara vários prêmios de teatro e dirigia um espetáculo de muito sucesso naquele momento; Marcos fora para os Estados Unidos e fizera carreira como músico em Nova York, mas preferia que o chamassem apenas de Mike; Pámela – nossa Garota Verão 87 – era atriz e modelo, mas estava descansando por enquanto e estudando novas propostas; Reginaldo – o revolucionário – era político, já atuara como assessor, secretário, vereador e, naquele momento, cercava-se dos amigos para garantir alguns votos para deputado federal...
Todos com suas conversas empoladas, superficiais, esnobes e caricatas. Por onde andava o “Esquadrão Imbatível”? Éramos autênticos, irritantemente verdadeiros... E agora estávamos reduzidos a um bando de babacas, que tanto criticáramos no passado. Eu senti que aquele não era um lugar para mim... Mesmo porque os puros ideais que nos motivava a realizar aquele encontro foram pervertidos... Angariar votos... Veja só!
Lembro-me de ter sentado na guia da sarjeta e de chorar ainda mais que na noite da formatura. Antes jamais tivesse ido àquele encontro. Ao menos não me sentiria tão mal. Meus antigos companheiros - farinha do mesmo saco - agora eram Avis Rara. Eu me sentia uma formiga, um nada, perto de tão ilustres pessoas, doutores, intelectuais, capitalistas, cidadãos bem-sucedidos. Minha vida era uma merda... Mas, agora, eu sentia que era uma merda pior ainda.
Uma lágrima rolou sobre a tatuagem no meu braço: “Glória”, meu amor paraguaio. Eu a conheci quando traficava componente eletrônico para o Brasil; depois foi a vez de fazer a América, mas fiquei preso lá durante quatro longos anos e conheci Linda, que me deu um filho. De volta para o Brasil, fui camelô, vendedor de livros, corretor de seguros e empresário. Após ter percorrido meio mundo, muitas vezes sem ter um tostão no bolso, tornei-me notório Dom Juan, sem jamais me esforçar muito para isso. Com alguma decência no trajar e atenção à mulher certa, bastava contar um pouco das minhas experiências pelo mundo e nada mais. Fiz disso meu passa-tempo, magoei muitas pessoas que me amavam, foi irresponsável e desprezível. Hoje vivo escondido. Acuado e sem dinheiro para aplacar a ira daquelas que outrora me amaram e daqueles que me serviram; sem nenhuma dignidade, como guerreiro desertor. Meus companheiros já não existem mais; foram substituídos por esboços pretensiosos e pernósticos. Perdemos a guerra.
Reviver é estragar as boas lembranças.
(Paulo Henrique Alves Machado)